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Um caso para não esquecer...

Um caso para não esquecer!

Horror íntimo ou vocação coletiva para envergar a toga? Catarse pessoal ou sumarização da justiça? Tragédia ou circo midiático? A morte da menina Isabella Nardoni toca na emoção do país inteiro, qualquer que seja a conclusão do inquérito.

ALBERTO DINES, Jornalista

O Brasil festeiro, erotizado, apressado, partidarizado e narcisado faz uma breve pausa para pensar. Pensar e sofrer, individuar-se e abandonar a manada equalizadora. Tal como aconteceu com o menino João Hélio, despedaçado nas ruas do Rio em Fevereiro de 2007, uma criança incapaz de emitir mensagens cala a estupidez reinante e avisa que é hora de incomodar-se.
A dengue, a tremenda pressão mundial no preço dos alimentos, o narcotráfico, o genocídio no Sudão, a guerra religiosa no Iraque, a repressão chinesa no Tibete e o ódio solto no Oriente Médio certamente causarão a morte de milhares ou milhões de crianças pelo mundo afora.
Mas esta criança singularizada pela tragédia, subitamente emudecida por uma bestialidade insuspeitada, despertou nossa humanidade. Numa questão de horas, converteu em órfãos a imensa nação dos adultos.
Ninguém se importa com a prática do infanticídio em algumas tribos indígenas, defendida com empenho por antropólogos (“Folha de S. Paulo, 6/4). A cada dez horas, uma criança é assassinada, o Ministério da Saúde contabiliza, em seis anos, 5.049 mortes de meninos e meninas até 14 anos (“Globo”, 6/4/). Normal. A pedofilia e a prostituição infantil são encaradas com naturalidade, parte da “vida moderna”, incentiva o turismo.
A queda de Isabella deu um tranco nos bons costumes. Por alguns momentos sacudiu modos e modas, Ao contrário de João Hélio seu companheiro de infortúnio e martírio, a menina não acionou nossa compulsão legiferante. Até agora não apareceu um político oportunista para propor alguma lei absurda contra tragédias.
Até mesmo a parvoíce das autoridades incapazes de compreender a questão do segredo de justiça ou as disparatadas suspeitas vocalizadas incessantemente pela mídia antes mesmo de investigadas não conseguem sobrepor-se à soturna perplexidade que, por milagre, infiltra-se nos espíritos.
Imunizada contra a solidariedade, desumanizada por um debate partidário que na realidade só responde à pergunta “o que é que eu ganho com isso?”, a sociedade brasileira sempre se perfilou no bloco do “não-me-importa”. Envergonha-se de exibir o coração partido, mas agora oferece sutis indícios de sensibilização.
A dúvida sobre quem matou Isabella é tão dilacerante quanto a certeza de que alguém a matou. O filosófico e angustiante “por que?” começa a equiparar-se ao policialesco “quem?”. Os enigmas serão desfeitos, culpados logo aparecerão -- inevitável. A questão que deve permanecer e atazanar as almas e os espíritos relaciona-se com a mecânica da bestialidade. Desafio destinado a não consumar-se, exercício infindável, por isso salutar tanto para religiosos como para agnósticos, para céticos e idealistas, revolucionários e conservadores. Ignorar o animal que convive com o ser humano é próprio dos bárbaros.
Isabella é uma dolorosa oportunidade para questionamentos. Nações aturdidas, empurradas por sensações são incapazes de maturar sentimentos contínuos, comprometidas com éticas espasmódicas.
A morte de Isabella é um caso para não esquecer e aguilhoar.

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